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A ESTRATÉGIA CIENTÍFICA DA CHINA PARA O SÉCULO 21

COMO INOVAÇÃO, POLÍTICA INDUSTRIAL E PROJEÇÃO GLOBAL FORMAM A NOVA BASE DO PODER CHINÊS — E SERVEM DE EXEMPLO PARA OUROS PAÍSES

João Carlos

07/08/2025

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Crédito da imagem: gerada por IA

A China vive uma das fases mais ambiciosas de sua história recente no campo da ciência e tecnologia. Mais do que avanços pontuais, o país está promovendo uma reestruturação sistêmica com impacto global, baseada em três pilares fundamentais: inovação científica, política industrial coordenada e formação de talentos de alto nível.

Segundo editorial do China Daily, veículo estatal oficial, o relatório governamental anual de 2025 deixou claro que a ciência não é apenas um vetor de crescimento, mas uma base estratégica para a soberania nacional e para a liderança global. A integração entre pesquisa fundamental, aplicações industriais e educação científica forma o cerne dessa visão.

Essa abordagem foi analisada sob outra ótica no relatório "China Refocuses: The Reorganization of China's Science and Technology Ecosystem as a Geostrategic Imperative", publicado em junho pela Hoover Institution, ligada à Stanford University e à Texas A&M. O documento aponta que o Partido Comunista Chinês passou a ver a ciência como um instrumento direto de projeção de poder. Segundo o texto, o país está moldando seu ecossistema científico para reduzir dependências tecnológicas do Ocidente, estabelecer padrões internacionais alternativos e disputar hegemonia em áreas como inteligência artificial, biotecnologia, energia e materiais avançados.

Na prática, os dois movimentos se complementam. O discurso oficial enfatiza a modernização produtiva e o bem-estar da população, enquanto instituições analíticas internacionais revelam as ambições geoestratégicas subjacentes. Ambos convergem para uma mesma direção: transformar a China na potência científica dominante do século 21.

Iniciativas recentes reforçam essa trajetória. Em agosto, o premiê Li Qiang propôs a criação de um órgão internacional para governança da inteligência artificial, com apoio da ONU e das principais potências emergentes. No mesmo mês, o governo chinês anunciou um novo pacote de apoio financeiro à indústria de base científica, facilitando fusões, listagens em bolsa e emissão de títulos para empresas que avancem em áreas-chave como semicondutores, equipamentos médicos e software industrial.

Com esse modelo híbrido de desenvolvimento interno e projeção externa, a China sinaliza que não pretende apenas acompanhar a corrida tecnológica global: ela quer liderá-la.

Trajetória e conquistas concretas da China no campo científico

A consolidação da China como potência científica não se apoia apenas em planos e discursos: há uma série de realizações concretas que demonstram o alcance e a eficácia da estratégia do país.

Um dos exemplos mais significativos está no campo da exploração espacial. Em maio de 2025, a China lançou a missão Tianwen-2, destinada a coletar amostras de um asteroide próximo à Terra e realizar estudos pioneiros sobre cometas. Trata-se de um marco científico e técnico que coloca o país na liderança da nova corrida espacial asiática.

Na área da inteligência artificial, a China lidera aplicações práticas de larga escala. O sistema DeepSeek, implementado em hospitais e centros clínicos desde o início de 2025, usa IA generativa para apoiar diagnósticos e planejar tratamentos com altíssima precisão. Além disso, empresas chinesas como Alibaba, Baidu e Huawei têm colaborado em projetos de IA voltados à educação e à segurança pública.

Outro pilar da estratégia é a transição energética com protagonismo tecnológico. Em julho, foi iniciada a construção da usina hidrelétrica de Medog, no Tibete, com capacidade de geração superior à das Três Gargantas. A obra reforça o domínio chinês em engenharia de megaprojetos e a aposta em infraestrutura verde como motor de crescimento.

No campo da biotecnologia, a empresa XtalPi firmou um acordo de 6 bilhões de dólares para acelerar pesquisas em novos materiais e fármacos por meio de IA, colocando a China na vanguarda da descoberta científica automatizada.

Esses são apenas alguns dos muitos exemplos que comprovam como a ciência e a inovação deixaram de ser apenas setores estratégicos na China: elas se tornaram parte essencial da identidade nacional e da sua visão de futuro.

Raízes culturais e aposta histórica da educação

A atual revolução científica chinesa tem raízes profundas na história e na cultura do país. Desde os tempos da dinastia Han (206 a.C. – 220 d.C.), o conhecimento sempre ocupou papel central na estrutura do poder. A tradição confucionista, baseada no respeito à educação, no mérito intelectual e na hierarquia baseada em sabedoria, moldou por séculos a forma como o saber era valorizado social e politicamente.

Nos tempos imperiais, o sistema de exames imperiais (Keju), vigente por mais de mil anos, já estabelecia uma conexão direta entre domínio do conhecimento e ascensão social. Esse legado de reverência ao estudo e ao esforço intelectual permanece até hoje — e se traduziu, no século XXI, em políticas públicas de amplo investimento em educação e pesquisa.

Desde a abertura econômica iniciada por Deng Xiaoping nos anos 1980, a China passou a investir de forma maciça na formação de capital humano. Criou universidades técnicas de padrão internacional, incentivou programas de pós-graduação no exterior e repatriou talentos com ofertas competitivas. Iniciativas como o projeto 985 (lançado em 1998) e o projeto 211 (de 1995) transformaram dezenas de universidades chinesas em centros de excelência global.

Hoje, o país colhe os frutos dessa aposta. A China é líder mundial em formações de doutorado em áreas como engenharia, ciência dos materiais, química e computação. As universidades de Tsinghua, Peking e Fudan figuram entre as mais bem avaliadas do mundo em rankings internacionais. O ambiente de pesquisa é robusto e multidisciplinar, favorecendo a emergência de inovações com escala e impacto.

Assim, a base histórica e cultural da valorização do conhecimento encontra seu ápice na atual estratégia estatal de transformar ciência em soberania. O que antes era mérito imperial, agora é pilar de geopolítica.

Análise estratégica: a ciência como resposta à disputa econômica global

Na visão de analistas internacionais, como o economista sênior Han Ruifeng, do Instituto de Estratégia Global de Pequim, a política científica chinesa não pode ser dissociada do contexto geoeconômico mais amplo — especialmente após o acirramento das tensões com os Estados Unidos desde a administração de Donald Trump, marcada pelo início da chamada guerra comercial.

A partir de 2018, medidas tarifárias, restrições a empresas como Huawei e bloqueios no acesso a tecnologias críticas (como chips avançados) revelaram à China sua vulnerabilidade estratégica. A resposta foi acelerar a autossuficiência tecnológica, ampliando investimentos em pesquisa, inovação e substituição de importações.

Hoje, a China encara esse cenário não como obstáculo, mas como catalisador. A pressão externa tem reforçado a coesão interna, favorecendo políticas industriais integradas e foco na excelência científica como alavanca de soberania.

Do ponto de vista de longo prazo, analistas apontam que essa postura pode colocar a China em vantagem. Ao liderar a regulamentação de tecnologias como inteligência artificial, desenvolver megaprojetos sustentáveis e exportar modelos educacionais e científicos, o país se posiciona não apenas como fabricante do mundo, mas como potência intelectual do século 21.

Nesse sentido, a estratégia científica é, ao mesmo tempo, resposta e instrumento: nasce de uma conjuntura adversa, mas se transforma em vetor de reposicionamento global. Uma política de Estado que, para além da inovação, projeta um novo tipo de poder.

Quais lições o Brasil e outros países podem aprender com o exemplo chinês?

A experiência chinesa oferece ao Brasil uma série de reflexões estratégicas, especialmente em um momento em que o país enfrenta desafios estruturais na educação, na industrialização e na dependência tecnológica e econômica externa, como na atual taxação de 50% sobre produtos brasileiros adotada pelo presidente americano Donald Trump. Entre as principais lições estão:

1. Ciência como política de Estado, e não de governo

A continuidade dos investimentos em educação e tecnologia na China independe de ciclos eleitorais. O Brasil, por outro lado, sofre com descontinuidade e baixa institucionalização de políticas científicas. A criação de metas de longo prazo, blindadas de instabilidade política, é um passo essencial.

2. Integração entre educação, pesquisa e indústria

Na China, universidades, centros de pesquisa e setor produtivo atuam de forma coordenada. O Brasil ainda carece de mecanismos eficazes de articulação entre esses eixos, resultando em fuga de cérebros e baixa aplicação prática do conhecimento gerado.

3. Formação e valorização de talentos

Programas como o projeto 985 e a política de repatriação de talentos chineses mostram como o capital humano é tratado como ativo estratégico. O Brasil precisa fortalecer suas pós-graduações, criar incentivos para retenção de pesquisadores e fomentar uma cultura científica desde o ensino básico.

4. Inovação como motor de soberania

A China entendeu que autossuficiência tecnológica é essencial para reduzir vulnerabilidades externas. O Brasil ainda depende fortemente de tecnologias importadas e carece de políticas consistentes para setores estratégicos como semicondutores, energia renovável e biotecnologia.

5. Investimento com visão sistêmica e escala

Enquanto o investimento brasileiro em pesquisa e desenvolvimento gira em torno de 1,2% do PIB (com tendência de queda), a China investe acima de 2,5% com crescimento constante. O país asiático também prioriza megaprojetos com impacto regional e global.

Mais do que replicar o modelo chinês, o Brasil pode adaptar seus princípios estruturais à sua realidade democrática e multicultural. O ponto-chave está na construção de uma visão nacional de ciência, educação e inovação como vetores centrais de desenvolvimento e soberania.

A estratégia chinesa mostra que não há milagre, mas há método. E o futuro pertencerá não apenas às nações mais ricas ou populosas, mas àquelas que souberem transformar conhecimento em poder real e duradouro.

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